A Batalha de Anghiari
A arte tem o poder de eternizar um momento e transportar nossa consciência para além do tempo e do espaço.
Toda vez que um artista representa um fato ou uma ideia a partir de sua técnica e imaginação, está trazendo para o campo material uma janela que nos conecta com esta mesma realidade, seja pelo intelecto ou pelo coração.
Mas poucos artistas conseguem, a partir de sua obra, representar a profundidade e riqueza de significados de um determinado fato, como fez Leonardo Da Vinci. A Batalha de Anghiari, afresco que retrata a vitória dos florentinos sobre os milaneses em 29 de junho de 1440, através de um acirrado confronto pela disputa de território, é, possivelmente, a maior e mais importante encomenda recebida por Da Vinci, considerando suas dimensões de 7 metros de altura por 17 de largura.
O que torna esta obra tão especial, além do motivo de sua representação, foi a forma como Leonardo Da Vinci conduziu toda sua preparação. Antes de representar qualquer tema em suas pinturas, o mestre renascentista procurava visualizar toda cena do fato, explorando os mínimos detalhes que passariam desapercebidos por um observador desatento, mas que enriquecem a obra a ponto de torná-la uma janela viva para os futuros expectadores.
Essa orquestração pode ser percebida em sua narratória, como em um de seus manuscritos sobre o modo de representar uma batalha:
“Representar primeiro a fumaça da artilharia, misturada no ar com a poeira levantada pelo movimento de cavalos e combatentes. E esta mistura deve ser exprimida da seguinte maneira: a poeira, sendo uma coisa da terra, tem peso, embora por razão de sua fineza ela possa facilmente subir e misturar-se ao ar, pode facilmente cair novamente. É a primeira parte que sobe mais alto e, por isso, essa parte será a menos vista e parecerá quase da cor do ar… A mistura de ar, fumaça e poeira parecerá muito mais clara do lado de onde vem a luz que o lado oposto. Quanto mais os combatentes encontrarem-se neste tumulto, menos serão vistos, e menor será o contraste entre as suas luzes e sombras.”
Nesta breve passagem podemos perceber como Da Vinci utilizava a sua imaginação e o seu poder de observação para dar intensidade e vida às suas criações.
Michelangelo, que foi contemporâneo de Leonardo Da Vinci, também teria recebido uma encomenda igualmente imponente para ser pintada no mesmo salão do Palazzo Vecchio em Florença, mas para representar a Batalha de Cascina, outra vitória florentina, mas no ano de 1364 contra Pisa. O afresco seria pintado na parede oposta ao da Batalha de Anghiari, mas, assim como a encomenda de Da Vinci, apenas desenhos iniciais de Michelangelo chegaram até os dias atuais.
A obra de Michelangelo, reproduzida pelo seu discípulo Aristotele de Sangallo neste desenho, mostra o exato momento em que o exército florentino é surpreendido pela trombeta que anunciava o ataque do exército inimigo. Apesar da beleza dos corpos nus que se banhavam no rio Arno neste momento, eles não apresentam a mesma profundidade, movimento e intenção que Da Vinci conseguiu imprimir em sua Batalha de Anghiari.
Já o desenho apresentado no início deste post¹, que é comumente atribuído a Da Vinci, se trata de uma reprodução feita pelo pintor Peter Paul Rubens em 1603, a partir de sua suposta observação ao afresco original, porém, às custas de uma técnica de pintura malsucedida, a obra não teria resistido ao tempo e foi substituída por outra encomendada a Giorgio Vasari, que teria recoberto as paredes com afrescos que mostravam as vitórias militares da família Médici.
Porém, quase cinco séculos depois, mais precisamente em 1975, Maurizio Seracini, professor de engenharia da Universidade da Califórnia, ao analisar a pintura de Vasari em busca da obra perdida de Da Vinci, observou na imagem de uma pequena bandeira as palavras “Cerca Trova”, que no português significam “procure e encontrará”. Seria esta uma pista de Giorgio Vasari? Estaria a Batalha de Anghiari oculta sobre a de pintura de Vasari?
Como a tecnologia da década de 70 não permitia avançar nas pesquisas, este assunto ficou por muito tempo parado, até que, em 2000, com o apoio de um filantropo britânico, Seracini voltou a Florença equipado com novas tecnologias que permitiram, por meio de uma análise com um radar, descobrir que Vasari não havia revestido a obra de Da Vinci, mas sim construído uma nova parede de tijolos para sua pintura, ou seja, existia uma grande possibilidade da obra de Da Vinci estar preservada por trás de seu afresco.
Apesar dos avanços, novos desafios surgiram como a autorização para perfurar a atual obra de Vasari para inserir uma sonda que pudesse visualizar a real existência de uma pintura na parede escondida e a própria análise química dos compostos extraídos da parede para confirmar sua autenticidade. Esta saga, que ainda se estende até os dias atuais, é explicada em detalhes por Maurizio Seracini, em uma palestra do TED Talks:
“O amante é movido pela coisa amada, assim como o sentido é movido por aquilo que ele percebe.”
Leonardo Da Vinci
Anotações de manuscritos -
1 A Batalha de Anghiari
Afresco, 1505
Palazzo Vecchio, Florença
Leonardo Da Vinci