O Dilúvio
O dilúvio, assim como o retorno do messias, é um mito presente em diferentes culturas e que apresenta, sob a forma de uma narrativa, uma série de eventos que predizem um acontecimento épico que marca o início de uma nova era da humanidade.
A versão mais conhecida do dilúvio é retratada na Bíblia, em quatro capítulos do Gênesis, onde a Terra teria sido completamente coberta por água após 40 dias e 40 noites de chuva incessante. Esses registros atravessaram a história e muitos religiosos hoje defendem a existência deste episódio como um acontecimento global, que na época teria dizimado toda a humanidade mas preservado a arca de Noé, para garantir sua posteridade.
O registro de fósseis marinhos no alto de montanhas foi uma das evidências utilizadas por muito tempo para sustentar este fato, já que não haveria outro motivo, senão um dilúvio, para levar conchas e cascalhos a regiões com mais de 2 km acima do nível do mar. Outra hipótese defendida por cientistas era a da formação inorgânica espontânea destes vestígios dentro das rochas, já que, teoricamente, seria improvável o deslocamento de vida marinha até aquela altitude.
Tanto a teoria da inundação quanto das formações inorgânicas permaneceram em circulação até meados do século XVII, quando foram gradualmente descartadas em favor de pesquisas modernas, mas em nenhum momento foram aceitas por Leonardo Da Vinci, que, no início do século XVI, desenvolveu sua própria análise do dilúvio.
Em uma de suas expedições às montanhas de Parma e Piacenza, Da Vinci passou a perceber a evidência de fósseis de conchas e de cascalhos a quase 2km de altitude do nível do mar. Intrigado com aquela constatação, passou a remontar as condições do então dilúvio bíblico na esperança de encontrar respostas que justificassem tal fenômeno.
No início do seu estudo sobre o dilúvio, Da Vinci procura transcender os registros escritos e busca na própria natureza os elementos para sua análise:
“Já que as coisas são muito mais antigas que as letras, não devemos admirar-nos de que em nossos dias não exista registro de como estes mares tomaram tantas nações…mas basta para nós o testemunho de coisas produzidas nas águas salgadas e reencontradas nas altas montanhas.”
Na tentativa de reconstruir o cenário do suposto dilúvio, Da Vinci realizou estudos aplicando seu conhecimento sobre o movimento das águas e dos ventos e projetou cenários com a ilustração do movimento destes fenômenos numa composição complexa e ao mesmo tempo harmônica.
Conforme a análise de Fritjof Capra no livro “A Alma de Leonardo Da Vinci” (2), os desenhos do dilúvio são violentos e inquietantes. Mostram árvores sendo arrancadas do chão e feitas em pedaços, rochas desabando sob a chuva torrencial, casas e cidades inteiras ruindo ao peso de tempestades furiosas.
Uma das grandes peculiaridades de Leonardo Da Vinci era sempre buscar analisar qualquer situação por mais de uma perspectiva. Ele integrava a arte e a ciência de forma a prever possíveis hipóteses e construía cenários para lhe auxiliarem no entendimento dos fenômenos da natureza.
O primeiro indício do dilúvio analisado por Da Vinci foi a presença de fósseis de conchas no alto das montanhas e em diferentes camadas superpostas ao longo das rochas:
“…nem pelo transbordo do mar poderiam as conchas, sendo objetos pesados, serem levados pelo mar até o alto das montanhas, e nem tampouco pelos rios, em curso que seria contrário ao de suas águas…e as conchas da Lombardia ainda estão em quatro níveis e, portanto, em toda a parte, tendo sido criadas em várias épocas.”
Esta primeira análise de Da Vinci já refuta a teoria até então em vigor sobre a inundação, já que, segundo ele “…o movimento do mar em sua jornada contra o curso dos rios deve ter sido tão lento que não poderia ter carregado, flutuando nele, coisas mais pesadas que ele”.
Referente à teoria das formações inorgânicas, Da Vinci mais uma vez rebate a preexistência de conchas nestes ambientes, dizendo em seus manuscritos:
“E se você disser que tais conchas foram criadas e ainda são constantemente criadas nestes lugares pela natureza local, essa opinião não pode existir em um cérebro com extensos poderes de raciocínio, porque os anos de seu crescimento são aqui explicitamente numerados nas coberturas externas das conchas…e dentro das rochas elas não seriam capazes de se mover.”
E conclui sua análise: “Entre uma e outra camada de rocha, há ainda vestígios de vermes que se arrastaram neles quando ainda não estavam secos”, endossando sua teoria de que as camadas de rochas que hoje possuem fósseis marinhos um dia já fizeram parte do fundo do oceano, constatação que, apesar de ser a mais plausível em sua análise, admitia que escapava à sua compreensão naquele momento.
Apesar de não conseguir achar a resposta para este enigma, Da Vinci conduziu uma linha de raciocínio sistêmica e perspicaz que conseguiu rebater de forma fundamentada as teorias até então vigentes.
Recorrendo aos registros e análises científicas que temos hoje, chegamos à conclusão de que Da Vinci esteve correto em todas as suas constatações, inclusive naquela que afirma que a presença de fósseis marinhos indicava que o alto das montanhas já esteve no fundo dos mares.
O que Da Vinci não sabia na época, é que, de acordo com o artigo “Fossil secrets of the Da Vinci codex” (4) de Jo Marchant, o local onde ele costumava realizar as suas expedições era uma formação geológica que, há dez milhões de anos, já foi uma bacia marinha que se formou ao lado das montanhas dos Apeninos, quando as placas tectônicas em choque provocaram a subida de toda a região. Os choques sísmicos desencadearam correntes que carregavam grandes volumes de areia até o leito do mar, que posteriormente se transformaram em rocha sedimentar.
Era essa a peça que faltava para o seu quebra-cabeça, no entanto, não abriu mão da teoria que formulou fundamentada exclusivamente na sua experiência e na sua perspicaz observação dos fatos. Da Vinci entendia que qualquer situação poderia ser melhor compreendida ao ser analisada de forma sistêmica e não apenas isolada, pois todas os fenômenos naturais atuam de forma conjugada. Separá-los em partes, em seu entendimento, seria o mesmo que querer justificar o comportamento individual e circunstancial de algo em detrimento do todo.
“A criatura que reside dentro da concha constrói sua habitação com juntas e vigas e telhado em várias outras partes, assim como o homem faz a casa onde mora.”
Leonardo Da Vinci
Anotações de manuscritos -
1 Estudo de dilúvio
Coleção Windsor, 1514
2 A Alma de Leonardo Da Vinci
Fritjpof Capra, página 79
3 Marine Fossil, Kentucky
Appalachian Mountains
https://goo.gl/yjptHK
4 Fossil secrets of the da Vinci codex
Jo Marchant, 2010
https://goo.gl/qyqvpv