O Coração de Da Vinci
Assim como o sol é capaz de emergir os fluidos vitais da Terra a partir da água que nutre a vegetação do solo e da seiva que nutre os tecidos das plantas, Da Vinci acreditava que o coração era o órgão responsável pelo calor e sustentação da vida no ser humano.
O hábito de observar padrões na natureza e utilizá-los como referência na concepção de analogias fez Da Vinci compreender muitos dos mecanismos de manutenção da vida, como o projeto de uma fornalha em que ele utilizou o suposto funcionamento do coração para bombear o calor de uma câmara para outra.
A ideia de o coração ser uma espécie de lareira cardíaca, responsável pelo calor do corpo, era bastante tentadora para o mestre renascentista, não só pelas diversas referências encontradas na própria natureza, mas também por encontrar ressonância no pensamento de antigos estudiosos como Aristóteles e Galeno.
Apesar de concordar com Galeno que o coração produzia o calor inato do corpo, Da Vinci foi além e, a partir de complexos estudos anatômicos, chegou à conclusão de que, diferentemente do que compreendia Galeno, o coração não era apenas um órgão respiratório, e sim um sofisticado músculo, responsável por bombear o sangue por todo o corpo.
Na medida em que Da Vinci se aprofundava na dissecação minuciosa de várias partes do coração e avançava no estudo dos fluxos turbulentos da água e do ar, começou a desenvolver uma elaborada teoria para justificar o princípio do calor no coração.
Em seus estudos anatômicos, ele anotou “o coração não é, por si só, o começo da vida, mas um vaso feito de músculo denso, vivificado e nutrido por veias e artérias como os outros músculos”.
Outra descoberta de Leonardo, a partir de seus estudos anatômicos, foi a presença no coração de quatro e não duas câmaras, como acreditava inicialmente Galeno, que reconhecia apenas a existência dos ventrículos.
Segundo Fritjof Capra em seu livro, a “Alma de Leonardo Da Vinci”, “Quando descobriu os átrios, Da Vinci teve imediatamente a ideia de explicar o calor corporal como produto do atrito do sangue em trânsito pelas quatro câmaras do coração. Seu vasto conhecimento dos fluxos turbulentos permitiu-lhe pintar pequenos vórtices com grande precisão e descrever seu movimento com grande exatidão.”
Porém, apesar de ser uma teoria sofisticada e coerente para seu tempo, segundo Capra, hoje sabemos que o calor corporal dos mamíferos é resultado de uma série de reações bioquímicas nos tecidos do corpo e que a temperatura deste é controlada por um centro regulador no cérebro.
Mas a descoberta mais notável realizada por Leonardo e corroborada pela ciência séculos depois foi o sistema de funcionamento das valvas cardíacas, demonstrando com impressionante exatidão suas diversas etapas de abertura e fechamento. Diferentemente do que se compreendia até poucas décadas atrás, a abertura e fechamento das valvas não se dava imediatamente pela pressão do sangue, mas acontecia gradualmente por interferência de um complexo sistema de fluxos e refluxos do sangue, conclusão que ele havia chegado como resultado de estudos prévios da turbulência dos líquidos em sistemas hidrodinâmicos.
Segundo Capra, quando Leonardo visualizou o fluxo do sangue pelas câmaras do coração, artérias e veias, seu principal objetivo era compreender como os espíritos vitais (mistura do sangue com o ar) são gerados, como “vivificam” os tecidos do corpo e como o sangue nutre os tecidos, ou seja, Da Vinci queria entender os processos metabólicos básicos do corpo, que são a própria essência da vida biológica.
A apurada e avançada percepção de Da Vinci acerca dos fenômenos naturais em uma época desprovida de todo acervo cultural e científico que temos atualmente nos mostra que mesmo todo o conhecimento hoje disponível, não substitui a vivência pessoal.
O processo de redescoberta da vida e de seus fenômenos passa necessariamente pelo interesse genuíno e experiência própria dos fatos. Quando terceirizamos o entendimento de algo replicando as ideias de outras pessoas antes que isso faça sentido para nós mesmos, deixamos de ser protagonistas de nossa própria jornada de autoconhecimento.
“Onde há vida, há calor, e onde há calor, há movimento de humores aquosos.”
Leonardo Da Vinci
Anotações de manuscritos -
1 – Estudos anatômicos do coração
The Royal Collection, 1511-13
2 – As quatro câmaras do coração
Coleção Windsor, fólio 155r, 1511
3 – Sistema de abertura e fechamento das valvas
The Royal Collection, 1511-13
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[…] veio também o entendimento de como o sangue flui pelo coração, o que o levou a construir o primeiro protótipo de coração artificial do mundo.No Educação 360, durante o painel que discutiu ensino híbrido e metodologias ativas, Lucia […]