Em seu livro de mecânica teórica, Leonardo Da Vinci reúne conceitos utilizados em centenas de projetos de máquinas como pontes levadiças, paraquedas, tanques de guerra e, pasmem, veículos autopropulsores como carros e bicicletas.
A base para a compreensão da mecânica aplicada estava no que Da Vinci chamava dos quatro poderes da natureza, a saber: peso, força, movimento e choque, que o mestre renascentista designava como “poderes da natureza pelos quais a raça humana, em suas maravilhosas e várias obras, parece criar uma segunda natureza neste mundo“.
A forma peculiar como Da Vinci à sua época percebia estes fenômenos, desprovido de toda a tecnologia que hoje nos facilita a definição destes conceitos, era baseada puramente na observação dos fatos e pela sua talentosa capacidade de interpretação da natureza, fonte e inspiração de toda produção humana.
Peso
Para compreender o conceito de peso, Da Vinci se baseava no contraposto da leveza, na medida em que a ausência de um define a existência do outro:
“A leveza não é criada a menos que se junte ao peso, nem o peso é produzido, a menos que seja colocado acima da leveza e tampouco a leveza tem existência alguma, a menos que exista sob o peso…”
Esta interpretação subentende que nenhum fenômeno se expressa por si só e que sempre há a compensação de algo contrário que justifica o seu comportamento e que busca o equilíbrio:
“Se, por exemplo, uma quantidade de ar for colocada sob a água, esta imediatamente adquire peso, não porque ela tenha mudado, mas porque não se depara com a devida quantidade de resistência, portanto, ela desce até a posição ocupada pelo ar abaixo dela, enquanto o ar preenche o vácuo deixado pelo peso.”
A partir desta constatação, Da Vinci observou a influência da gravidade sobre os elementos, antecipando em pelo menos 200 anos a teoria gravitacional de Isaac Newton:
“Diz-se que um corpo é pesado quando, estando livre, direciona o seu movimento para o centro do mundo pelo caminho mais curto, ao passo que, um corpo é leve quando, estando livre, afasta-se do centro do mundo.”
Força
O conceito clássico de força, aceito atualmente pela ciência, é de um agente físico capaz de alterar o estado de repouso ou movimento uniforme de um corpo material, porém, para Leonardo Da Vinci, ele ia um pouco além:
“Força nada mais é que energia espiritual, um poder invisível que é criado e promovido por meio da violência externa, por corpos animados para corpos inanimados, dando a esses a semelhança de vida, e essa vida funciona de uma maneira maravilhosa, restringindo e transformando em lugar e forma todas as coisas criadas.”
Para Da Vinci, a força não era apenas um fenômeno que atuava por meio de agentes físicos externos, mas também uma energia propulsora que animava os seres vivos:
“O espírito dos animais sensíveis passa pelos membros de seus corpos, e quando os músculos nos quais ele entra são reativos, ele os faz inchar, e quando incham, encurtam, e ao encurtar, puxam os tendões que são ligados a eles. E daí advêm a força e o movimento dos membros humanos. Consequentemente, o movimento material surge do espiritual.”
A força também tinha uma relação íntima com o peso, considerando sua natureza e comportamento:
“Força e peso têm muito em comum em todos os seus poderes, e eles só diferem no movimento de seu nascimento e morte, pois o peso simplesmente morre com a chegada ao seu lugar de origem, mas a força nasce e morre em cada movimento.”
Essa relação da força com a geração da vida era a forma como Da Vinci percebia a expressão deste fenômeno no movimento dos seres vivos e na transformação dos elementos:
“Os elementos repelem-se ou atraem-se mutuamente, pois vemos a água expelindo ar de si, e o fogo entrando como calor sob o fundo de uma caldeira, para depois escapar em bolhas sobre a superfície da água fervente, e novamente, a chama atrai para si o ar, e o calor do sul atrai a água na forma de vapor úmido que, depois, precipita-se como chuva forte e pesada.”
E para conceituar a magnitude deste fenômeno em todas as suas expressões, Da Vinci recorria a uma visão lúdica e romântica, abarcando todas as nuances subjetivas que não são percebidas pela nossa lógica e razão:
“Ela nasce em violência e morre em liberdade, e quanto maior for, mais rapidamente será consumida. Ela repele em fúria qualquer coisa que se oponha à sua destruição. Deseja conquistar e aniquilar a causa da oposição e, ao conquistar, destrói-se. Desenvolve-se mais poderosa quando encontra o maior obstáculo.”
Movimento e Choque
O movimento e o choque encerram o ciclo virtuoso de expressão dos corpos terrestres. De acordo com a física, movimento é a variação de posição espacial de um objeto ou ponto material em relação a um referencial no decorrer do tempo. Já o choque se caracteriza pela colisão entre dois corpos.
O movimento foi fruto de diversos experimentos de Da Vinci na observação da projeção de corpos pelo peso e força, como projéteis balísticos, tempestades e até arremessos de flechas por arcos:
“A onda do ar que é produzida por um corpo movendo-se pelo ar será muito mais rápida que o corpo que produz. Isso acontece porque o ar é muito volátil, e quando um corpo move-se através dele, cria a primeira onda em seu primeiro movimento, e essa primeira onda não pode ser feita sem, ao mesmo tempo, causar outra depois, que por sua vez causará outra. E, assim, esse corpo, movendo-se pelo ar, cria sob si, em cada estágio de tempo, multiplicações de ondas que, em seu percurso, preparam o caminho para o movimento de seu movedor.”
Da Vinci sempre buscava correlacionar seus conhecimentos conectando ideias e conceitos, o que lhe permitiu chegar a diversas constatações pela observação, como no caso da relação entre o movimento, peso e gravidade:
“Toda ação natural é feita pelo caminho mais curto, e é por isto que a descida livre do peso é feita em direção ao centro do mundo, porque esta é a distância mais curta entre a coisa móvel e a maior profundidade do universo.”
O choque ou golpe, por sua vez, era compreendido por Da Vinci como a restrição e fim do movimento, que deixa uma impressão quase permanente no objeto de destino:
“Um golpe é um fim de movimento criado por um período indivisível de tempo, porque é causado no ponto que é o fim da linha do movimento feito pelo peso que é a causa do golpe.”
Este período indivisível de tempo citado por Da Vinci parte da sua observação sobre a repercussão de um golpe sobre um objeto e de como ele transfere, em certo grau, sua força e energia:
“Digo que todo corpo movido ou atingido guarda, em si, por algum tempo, a natureza deste golpe ou movimento, e guarda em proporção ao poder da força deste golpe ou movimento, maior ou menor. O repique de um sino deixa sua similaridade atrás de si, impressa como o sol no olho ou o aroma no ar.”
Muitas observações de Da Vinci, apesar de parecerem elementares, desenvolvem o raciocínio contínuo que muitas vezes nos falta quando constatamos a evidência de algo pela coisa em si, sem buscar o seu conhecimento de causa. Esta progressão de raciocínio ajuda a apurar a percepção e o senso crítico, habilidades essenciais para o desenvolvimento de uma mente criativa.
Para finalizar este estudo, gostaria de compartilhar uma passagem dos manuscritos de Da Vinci de que gosto muito, que é uma analogia que o mestre renascentista faz do movimento com o tempo:
“Um ponto não tem parte; uma linha é o trânsito de um ponto; pontos são as fronteiras de uma linha. Um instante não tem tempo. O tempo é feito de movimentos do instante, e os instantes são as fronteiras do tempo.”
Uma das aplicações práticas destes conceitos é o estudo sobre o movimento perpétuo, uma máquina hipotética criada por Da Vinci, como ensaio de um motor de movimento contínuo e perpétuo.
[testimonial name=”Leonardo Da Vinci”]“A força é ilimitada, pois por meio dela, infinitos mundos poderiam ser colocados em movimento se fosse possível fazer instrumentos por meio dos quais essa força pudesse ser gerada.”[/testimonial]
1 Estudo sobre o peso e atrito dos corpos
Codex Arundel, 1478-1519
2 Estudo sobre a suspensão de corpos
Codex Madrid I, 1490-1499
3 Estudo de sistemas de engrenagens e polias
Codex Madrid I, 1503-1505
4 Estudo de projéteis balísticos
Codex Atlanticus, 1478-1519